Corrente de Consciência

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador." Clarice Lispector

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janeiro 16, 2007

Ricardo Reis e o distanciamento

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

Ricardo Reis


Será preferível desligarmo-nos do afecto, como preconiza Pessoa na voz de Ricardo Reis nesta ode? Tornar-se-á mais ao homem despir-se de qualquer tipo de sentimento, positivo ou negativo, de forma a proteger-se da dor futura pelas coisas terem acabado? Deveremos então optar por uma estada nesta vida “sem desassossegos grandes / (…) Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz”, como nos diz outra ode, a belíssima “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”?
Ricardo Reis era, sem dúvida, um defensor de uma passagem tranquila por esta vida, uma vida sem desassossegos e cuidados. Segundo as suas palavras, de nada adiantam as grandes paixões, os grandes amores. Não que Ricardo Reis não incite ao amor, muito pelo contrário: defende que, como o sujeito de uma das suas obras pede à amada, “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. / Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio”: “o rio sempre correria, / e sempre iria ter ao mar”.
Assim sendo, será menos custoso desprendermo-nos do outro se, no futuro, os sentimentos se transformarem ─ e não que murchem ou desapareçam: apenas assumem contornos mais suaves, mais amenos. Como nos diz Ricardo Reis, temos de deixar que as flores fiquem no nosso colo, para que “o seu perfume suavize o momento”: é melhor ficarmos um ao lado do outro sem grandes desassossegos, pensando apenas como poderia ser se tivéssemos singrado por um caminho mais sinuoso, de beijos e calor.
Segundo este heterónimo de Pessoa, a vantagem de tal distanciamento voluntário é não sofrermos caso o outro se afaste ou caso a vida nos force a seguirmos cada um o seu caminho.
Para terminar, transcrevo a bonita ode à qual também faço referência nesta pequena ─ atrevo-me a dizer ─ dissertação:
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.