Corrente de Consciência

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador." Clarice Lispector

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dezembro 30, 2009

Requiem por mim

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.


Miguel Torga

dezembro 26, 2009

Mirando um espelho

O Tempo Seca o Amor

O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.


Cecília Meireles

dezembro 06, 2009

Ao frio

Nunca mais seremos crianças. Nunca mais seremos inocentes. Nunca mais faremos algo só porque sim, só porque o outro talvez vá gostar, porque o irá fazer feliz. Há já muito tempo que não estamos nesse tempo. Agora tudo o que fazemos é porque vai parecer bom, bonito, interessante. Simpático. Fazemos porque os outros nos fazem fazer; fazemos porque os outros têm forma de nos fazer ver que o que parece bem é aquilo.
Porque é que já não há aquele "estar porque sim"; estar junto só por estar perto, sentir aquela presença logo ali, mesmo que em silêncio.
Nunca mais seremos crianças. Nunca mais vamos rir um para o outro e dizer "vamos brincar". Nunca mais nos olharemos nos olhos e, sem falar, dizer "gosto de ti". Agora, tudo o que fazemos já não fazemos. Não fazemos porque pode parecer outra coisa. Pode parecer um interesse demasiado; não pode parecer nada.
Por isso, já nada fazemos. Mantemo-nos separados, calados, cabisbaixos, desconfiados. Metemos as mãos nos bolsos, porque está frio. É só frio; falamos do tempo porque já não há nada para dizer; porque as mãos estão nos bolsos.
Já não olhamos um para o outro para dizer "vamos brincar".